.

.

About

CIDADE E A POESIA / Por Talles Azigon

Posted by Nóis de Teatro On 16:33 No comments

 


Caso alguém pergunte minha profissão respondo sem titubear: sou poeta. Se esta mesma pessoa insiste em saber quais são as atribuições e as atividades de um poeta, em que esse pode contribuir para o bem comum, posso fazer uma lista de ações, entre elas, uma das mais importante é enxergar a cidade e explicá-la para todas as outras pessoas.

 

Pedreiros, marceneiras, eletricistas, engenheiras, arquitetos, urbanistas, constroem e organizam fisicamente a cidade. Poetas a questionam, apontam suas fissuras, sonham suas possibilidades, misturam todas as matérias orgânicas, inorgânicas e espirituais. Entendemos os movimentos que as dinamizam e as fazem ser.

 

Nos últimos dez anos, nos meus cinco livros, observei e escrevi Fortaleza, não apenas a Fortaleza cartão postal, que, infelizmente, a qual é reduzida nossa cidade, mas a Fortaleza em toda a sua extensão, em suas tantas paisagens, sabores, cores, gostos. E, usei como parâmetro as outras cidades que tive a oportunidade de também conhecer, Belo horizonte, São Paulo, Recife, Porto Alegre, Brasília. Cada cidade é única, e Fortaleza é a minha, totalmente minha, gravada no meu corpo, no meu amor, na minha poética, na minha angústia, no meu sonho.

 

a cidade morta

a cidade torta

a cidade cobra

uma horta menos venenosa

a cidade aborta

a cidade porta

de outras cidades

que brotam

 como um poste de mágica

 de uma mesma

 aparente

 única cidade

cidade santa

confode com a cidade puta

as minorias em maior número

somem em dedos de preciprédios

 poliúnica

 cidade

não rima

com identidade

 descobri a exemplo deste poema

 que a cidade é uma abstração

 assim como eu

 

Nasci no bairro da maraponga, no ano de 1989, minha vó tinha um bar, minha mãe que me criou era, e ainda é, lavadeira de roupa, e conta as histórias de como usava as grandes, hoje extintas pedras da lagoa como seu local de trabalho. O bairro era uma espécie de lugar mágico que jorrava água por todos os lados e que foi secando, sendo aterrado, sendo destruído, sendo substituído por condomínios, e assistiu um minguar de vida. Durante meus dez primeiros anos, a cidade era o bairro, as poucas notícias da existência de outros lugares vinham através de eventos indesejados, como doenças ou visitas a casas do meu pai, que me obrigava a me deslocar.

 

A primeira literatura que consumi foram as histórias que minha avó contava e as músicas que tocavam em nosso bar. As histórias eram algo tão natural que só vim me dar conta delas depois de grande, já as músicas me intrigava, eu achava encantador a estrutura organizada e como as palavras se desencadeavam, mas causava-se incômodo particular que elas falavam de são Paulo, de Ipanema, de Copacabana e até de Recife, mas nunca falavam sobre a Maraponga, e nem sobre Fortaleza. Meu primeiro projeto foi inserir a Maraponga e a Fortaleza no mapa da poesia.

 

homem de uma terra distante

que monte de gente fingia desconhecer

por falta de pólvora e barco de chegar

não ouvi notícias das guerras de longe

 de desertos de longe

de gentes de longe

que cura doentes e anda sobre as águas

não atormentaria meus ouvidos esses fatos extraordinários

pois minhas mães

também curam os doentes e andam sobre as águas.

olho no reflexo da lagoa

o momento que a bomba cai

nada tenho eu com isso

amaldiçoou o barco e a pólvora

e espero que a europa

afunde em um naufrágio.

 

Com onze anos eu ganhei a liberdade de poder ir para o centro da cidade de ônibus, junto com meu melhor amigo, é a partir deste momento que descubro os trajetos, os caminhos, os espaços, os atalhos, o ônibus, o terminal, o trem, a internet, os artistas, a vida urbana. Frequentar o centro de uma cidade com 11 anos de idade, sem dinheiro algum, quando muito para comprar um salgado com vitamina no jarrão do Joel, é uma convocação para que você descubra o que existe de interessante e gratuito na cidade. Nesse sistema capitalista em que nos acostumamos a pensar que experiência é sinônimo de custo, descobrir a cidade gratuita foi a minha primeira faculdade de escrita criativa.

 

O custo de viver na cidade é um dado que a vida adulta nos ensina, esse custo vai moldar nosso amor e nosso ódio. Parece uma dicotomia, a gente olha pra natureza e pensa como tudo é gratuito e espontâneo, e quanto a gente olha para cidade, que aprendemos a dizer que não é natureza, tudo é carestia. O preço da passagem, a entrada para o jogo de futebol, o telhado que precisamos consertar para não sermos inundado pela chuva, a parafernália necessária para frequentarmos a escola, o preço para curar as doenças de vivermos todas juntos, apertadas em um pedaço de chão, que vai se contaminando com esgoto a céu aberto e fumaça tóxica expelida por carros e fábricas. Tudo isso dá vontade de viver outra experiência, não essa.

 

preciso partir

ou parto de vez

de dentro de mim

 

preciso fugir

dessa localidade

buraco de lama

insiste, volta e preenche

o esforço inútil da minha mente

 

preciso sair,

pois não caibo na cidade

não caibo na verdade

não caibo no tubo de ensaio

 

meu remédio é sumir

eu sofro do mal do aqui.

 

Deveras, se a gente pensar na solidez da desigualdade e em todas as suas consequências em nossa experiência de vida, desigualdades que atinge de maneira bruta as cidades como Fortaleza, é mais fácil aceitar que não valeria a pena nem estar vivo, se somos a maioria, nós pobres, permanecer parece não ter razão.

 

Contudo, para além dos apesares, continuar na cidade, por opção ou por falta dela, foi possível para mim por duas coisas em especial, por causa da diversidade das pessoas, cada uma delas com uma história, com uma visão, com um temperamento, com um modo peculiar, que me intriga e me faz querer conhecê-las, nem que seja para, em alguns casos, afastá-las; e , pela natureza da cidade. Aqui, preciso afirmar, mesmo com todos os impactos e destruição, eu não consigo enxergar que cidade não seja natureza também, e cimento, o concreto, o plástico e o ferro , todos esses materiais que fazem de casas e prédios árvores estranhas, todas essas coisas são natureza também, verdade que muitas vezes são natureza contra a natureza, feridas na terra, doença das águas, mas eu não posso odiá-las. Que culpa tem um prédio? Que culpa tem uma ponte? A doença é o capitalismo e essa falsa democracia que a gente acredita que vive, os prédios, as casas, as pontes são apenas dados.

 

do nada

um prédio

grande e rico

 

um prédio

que ergue-se

no meio

donde antes era

casas pobres

 

só no meio de casa pobres

pode um prédio

grande e rico

ergue-se

 

a pobreza é concreto.

 

Nossa cidade, Fortaleza, é quente, soprada de ventos, tem muitas, muitas lagoas, mesmo quase todas hoje soterradas, tem uma fauna e uma flora, tem uma gente dotada de inteligência, criatividade, resiliência e boniteza. Sou um observador de nossa cidade e vejo que ela começa na minha na minha calçada.

ao lado, nas ruas

andando comigo

vivendo comigo

 

os gatos

os cachorros

as plantas

 

e as placas de comércio

o vento dá uma volta de bicicleta cargueira

 

soins zombam da cara

do velho que perde

a partida de dama

 

onomatopeicamente

turuns, esleches, platifis

 

vrun-vruns,

xirinsss

 

as vassouras piaçabas

arrastam folhas secas

nos calçamentos

 

e debaixo de tudo

a terra ainda cresce.

 

[bairro]

 

antes das seis

quando o sol indeciso não mostra

luz nem trevas

paradas de ônibus enchem-se

de pessoas sonolentas

bocejos e bons dias tímidos

dinheiro trocado para não atrapalhar

o tráfego de pessoas nas catracas

 

portões de enrolar, janelas, grades de ferro

deslizam para abrir

cheiro de café, cheiro de pão

a vida está assando no forno industriais

das padarias

 

a rua não fica limpa num passe de mágica

são senhoras gordas, pretas, magras, brancas

que sacam piaçabas, varrem calçadas

enquanto os homens do caminhão do lixo

rebolam no mei da rua os tambores

para raivas e resmungo das senhoras

 

logo

tudo

parado

se move

 

carros, bicicletas, adolescentes raivosos

indo para escola

as principais notícias vencidas de ontem

cruzam às esquinas de sacolas nas mãos

 

todo dia é único

 

E depois ela vai crescendo pra rua, pro bairro, pra toda uma extensão que tem tantas cores, tantas formas, tantas possibilidades de se ver, pegar, tocar, cheirar, provar, experimentar, sentir, que eu não poderia deixar de concordar com o poeta Mário Gomes quando, espantado, afirmando num grito de espanto “Puta que pariu, como é gostoso viver”. Principalmente nessa cidade de Fortaleza.

 

Sábado

o sol imprime a pele da cidade

uma melodia sai dos pneus dos ônibus

rasgando o asfalto

escorrendo entre passageiros

de mototaxi, ciclistas e pedestres

FORTALEZA IS BURNING

na praia dos crushs

garotas e garotos paqueram

no mar

mãos submarinas

encontram partes submersas

submergem

alcançam do fundo das águas

os altos dos céus

FORTALEZA IS BURNING

três garotas esquecem

dentro de um quarto de motel

o ontem,

sempre com 17 anos, ariana

FORTALEZA IS BURNING

alguém quase morre afogado no futuro

alguém atravessa o rio a nado na sabiaguaba

alguém abre uma cerveja na barra

meninos negros com cabelos loiros

descem as ruas da sapiranga

pegam um buzu em rumo da praia

FORTALEZA IS BURNING

suor desce o dorso

de jogadores de futebol

em campinhos do José Walter

amigos fazem café

depois do mais corajoso

ir comprar pão

naquela padaria por de trás da avenida C

uma pessoa chora

mesmo com todo excesso de luz solar

uma pessoa chora

nos fones de ouvido

pouco importa se

casa de velho, dona leda,

aviões, katy perry, kondizila

canibal corps

o sábado acontece

por todos os lados

FORTALEZA IS BURNING

 

Muito Obrigado.






0 comentários:

Postar um comentário