Caso alguém pergunte minha profissão respondo sem
titubear: sou poeta. Se esta mesma pessoa insiste em saber quais são as
atribuições e as atividades de um poeta, em que esse pode contribuir para o bem
comum, posso fazer uma lista de ações, entre elas, uma das mais importante é
enxergar a cidade e explicá-la para todas as outras pessoas.
Pedreiros, marceneiras, eletricistas, engenheiras,
arquitetos, urbanistas, constroem e organizam fisicamente a cidade. Poetas a
questionam, apontam suas fissuras, sonham suas possibilidades, misturam todas
as matérias orgânicas, inorgânicas e espirituais. Entendemos os movimentos que
as dinamizam e as fazem ser.
Nos últimos dez anos, nos meus cinco livros,
observei e escrevi Fortaleza, não apenas a Fortaleza cartão postal, que,
infelizmente, a qual é reduzida nossa cidade, mas a Fortaleza em toda a sua
extensão, em suas tantas paisagens, sabores, cores, gostos. E, usei como
parâmetro as outras cidades que tive a oportunidade de também conhecer, Belo
horizonte, São Paulo, Recife, Porto Alegre, Brasília. Cada cidade é única, e
Fortaleza é a minha, totalmente minha, gravada no meu corpo, no meu amor, na
minha poética, na minha angústia, no meu sonho.
a cidade morta
a cidade torta
a cidade cobra
uma horta menos venenosa
a cidade aborta
a cidade porta
de outras cidades
que brotam
como um poste de mágica
de uma mesma
aparente
única cidade
cidade santa
confode com a cidade puta
as minorias em maior número
somem em dedos de preciprédios
poliúnica
cidade
não rima
com identidade
descobri a exemplo deste poema
que a cidade é uma abstração
assim como eu
Nasci no bairro da maraponga, no ano de 1989,
minha vó tinha um bar, minha mãe que me criou era, e ainda é, lavadeira de
roupa, e conta as histórias de como usava as grandes, hoje extintas pedras da
lagoa como seu local de trabalho. O bairro era uma espécie de lugar mágico que
jorrava água por todos os lados e que foi secando, sendo aterrado, sendo
destruído, sendo substituído por condomínios, e assistiu um minguar de vida.
Durante meus dez primeiros anos, a cidade era o bairro, as poucas notícias da
existência de outros lugares vinham através de eventos indesejados, como
doenças ou visitas a casas do meu pai, que me obrigava a me deslocar.
A primeira literatura que consumi foram as
histórias que minha avó contava e as músicas que tocavam em nosso bar. As
histórias eram algo tão natural que só vim me dar conta delas depois de grande,
já as músicas me intrigava, eu achava encantador a estrutura organizada e como as
palavras se desencadeavam, mas causava-se incômodo particular que elas falavam
de são Paulo, de Ipanema, de Copacabana e até de Recife, mas nunca falavam
sobre a Maraponga, e nem sobre Fortaleza. Meu primeiro projeto foi inserir a
Maraponga e a Fortaleza no mapa da poesia.
homem de uma terra distante
que monte de gente fingia
desconhecer
por falta de pólvora e barco de
chegar
não ouvi notícias das guerras de
longe
de desertos de longe
de gentes de longe
que cura doentes e anda sobre as
águas
não atormentaria meus ouvidos esses
fatos extraordinários
pois minhas mães
também curam os doentes e andam
sobre as águas.
olho no reflexo da lagoa
o momento que a bomba cai
nada tenho eu com isso
amaldiçoou o barco e a pólvora
e espero que a europa
afunde em um naufrágio.
Com onze anos eu ganhei a liberdade de poder ir
para o centro da cidade de ônibus, junto com meu melhor amigo, é a partir deste
momento que descubro os trajetos, os caminhos, os espaços, os atalhos, o
ônibus, o terminal, o trem, a internet, os artistas, a vida urbana. Frequentar
o centro de uma cidade com 11 anos de idade, sem dinheiro algum, quando muito
para comprar um salgado com vitamina no jarrão do Joel, é uma convocação para
que você descubra o que existe de interessante e gratuito na cidade. Nesse
sistema capitalista em que nos acostumamos a pensar que experiência é sinônimo
de custo, descobrir a cidade gratuita foi a minha primeira faculdade de escrita
criativa.
O custo de viver na cidade é um dado que a vida
adulta nos ensina, esse custo vai moldar nosso amor e nosso ódio. Parece uma
dicotomia, a gente olha pra natureza e pensa como tudo é gratuito e espontâneo,
e quanto a gente olha para cidade, que aprendemos a dizer que não é natureza,
tudo é carestia. O preço da passagem, a entrada para o jogo de futebol, o
telhado que precisamos consertar para não sermos inundado pela chuva, a
parafernália necessária para frequentarmos a escola, o preço para curar as
doenças de vivermos todas juntos, apertadas em um pedaço de chão, que vai se
contaminando com esgoto a céu aberto e fumaça tóxica expelida por carros e
fábricas. Tudo isso dá vontade de viver outra experiência, não essa.
preciso partir
ou parto de vez
de dentro de mim
preciso fugir
dessa localidade
buraco de lama
insiste, volta e preenche
o esforço inútil da minha mente
preciso sair,
pois não caibo na cidade
não caibo na verdade
não caibo no tubo de ensaio
meu remédio é sumir
eu sofro do mal do aqui.
Deveras, se a gente pensar na solidez da desigualdade
e em todas as suas consequências em nossa experiência de vida, desigualdades
que atinge de maneira bruta as cidades como Fortaleza, é mais fácil aceitar que
não valeria a pena nem estar vivo, se somos a maioria, nós pobres, permanecer
parece não ter razão.
Contudo, para além dos apesares, continuar na
cidade, por opção ou por falta dela, foi possível para mim por duas coisas em
especial, por causa da diversidade das pessoas, cada uma delas com uma
história, com uma visão, com um temperamento, com um modo peculiar, que me
intriga e me faz querer conhecê-las, nem que seja para, em alguns casos,
afastá-las; e , pela natureza da cidade. Aqui, preciso afirmar, mesmo com todos
os impactos e destruição, eu não consigo enxergar que cidade não seja natureza
também, e cimento, o concreto, o plástico e o ferro , todos esses materiais que
fazem de casas e prédios árvores estranhas, todas essas coisas são natureza
também, verdade que muitas vezes são natureza contra a natureza, feridas na
terra, doença das águas, mas eu não posso odiá-las. Que culpa tem um prédio?
Que culpa tem uma ponte? A doença é o capitalismo e essa falsa democracia que a
gente acredita que vive, os prédios, as casas, as pontes são apenas dados.
do nada
um prédio
grande e rico
um prédio
que ergue-se
no meio
donde antes era
casas pobres
só no meio de casa pobres
pode um prédio
grande e rico
ergue-se
a pobreza é concreto.
Nossa cidade, Fortaleza, é quente, soprada de
ventos, tem muitas, muitas lagoas, mesmo quase todas hoje soterradas, tem uma
fauna e uma flora, tem uma gente dotada de inteligência, criatividade,
resiliência e boniteza. Sou um observador de nossa cidade e vejo que ela começa
na minha na minha calçada.
ao lado, nas ruas
andando comigo
vivendo comigo
os gatos
os cachorros
as plantas
e as placas de comércio
o vento dá uma volta de bicicleta
cargueira
soins zombam da cara
do velho que perde
a partida de dama
onomatopeicamente
turuns, esleches, platifis
vrun-vruns,
xirinsss
as vassouras piaçabas
arrastam folhas secas
nos calçamentos
e debaixo de tudo
a terra ainda cresce.
[bairro]
antes das seis
quando o sol indeciso não mostra
luz nem trevas
paradas de ônibus enchem-se
de pessoas sonolentas
bocejos e bons dias tímidos
dinheiro trocado para não atrapalhar
o tráfego de pessoas nas catracas
portões de enrolar, janelas, grades
de ferro
deslizam para abrir
cheiro de café, cheiro de pão
a vida está assando no forno
industriais
das padarias
a rua não fica limpa num passe de
mágica
são senhoras gordas, pretas, magras,
brancas
que sacam piaçabas, varrem calçadas
enquanto os homens do caminhão do
lixo
rebolam no mei da rua os tambores
para raivas e resmungo das senhoras
logo
tudo
parado
se move
carros, bicicletas, adolescentes
raivosos
indo para escola
as principais notícias vencidas de
ontem
cruzam às esquinas de sacolas nas
mãos
todo dia é único
E depois ela vai crescendo pra rua, pro bairro,
pra toda uma extensão que tem tantas cores, tantas formas, tantas
possibilidades de se ver, pegar, tocar, cheirar, provar, experimentar, sentir,
que eu não poderia deixar de concordar com o poeta Mário Gomes quando,
espantado, afirmando num grito de espanto “Puta que pariu, como é gostoso
viver”. Principalmente nessa cidade de Fortaleza.
Sábado
o sol imprime a pele da cidade
uma melodia sai dos pneus dos ônibus
rasgando o asfalto
escorrendo entre passageiros
de mototaxi, ciclistas e pedestres
FORTALEZA IS BURNING
na praia dos crushs
garotas e garotos paqueram
no mar
mãos submarinas
encontram partes submersas
submergem
alcançam do fundo das águas
os altos dos céus
FORTALEZA IS BURNING
três garotas esquecem
dentro de um quarto de motel
o ontem,
sempre com 17 anos, ariana
FORTALEZA IS BURNING
alguém quase morre afogado no futuro
alguém atravessa o rio a nado na
sabiaguaba
alguém abre uma cerveja na barra
meninos negros com cabelos loiros
descem as ruas da sapiranga
pegam um buzu em rumo da praia
FORTALEZA IS BURNING
suor desce o dorso
de jogadores de futebol
em campinhos do José Walter
amigos fazem café
depois do mais corajoso
ir comprar pão
naquela padaria por de trás da
avenida C
uma pessoa chora
mesmo com todo excesso de luz solar
uma pessoa chora
nos fones de ouvido
pouco importa se
casa de velho, dona leda,
aviões, katy perry, kondizila
canibal corps
o sábado acontece
por todos os lados
FORTALEZA IS BURNING
Muito Obrigado.
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