25 de janeiro de 2020. Sede do Nóis de Teatro (Granja
Portugal. Fortaleza. Ceará)
2020: o ano
de Xangô, o Orixá da Justiça, aquele que orienta a tomada de decisões será
também o que não permitirá que sejamos injustiçados.
2020: o
começo da década para alguns, o final da década para outros. Polêmicas à parte,
é um ano de transição, o ano onde muitos de nós precisaremos abrir novos
caminhos.
2020 também
é o ano em que é necessário que reforcemos: a arte brasileira da próxima década
será preta, indígena, trans, nordestina, mulher, periférica, marginal,
latino-americana... ou não será! Por isso, cada vez mais é necessário estarmos
juntas, fortalecermos nossas redes de afetos, de parcerias, de pensamento, de
cuidado mútuo e cooperação.
2020 também
é o ano em que o Nóis de Teatro corre sérios riscos de fechar sua sede e
paralisar suas atividades pela falta de recursos. O ano em que a encruzilhada
se bifurca. Nossos recursos se findaram: algo diferente precisa então ser
feito. Sendo assim, nosso planejamento estratégico anual foi realizado de forma
diferente do que sempre realizamos. Começamos 2020 abrindo as portas da nossa
sede para falar sobre nossa estrutura atual, sobre nossas incertezas, sobre
nossos medos diante do que se anuncia... A gente já combinou de não morrer:
agora precisamos de mais e mais forças para que 18 anos de Teatro de Grupo não
sejam apenas a memória de um movimento que se foi.
Diante do cenário de instabilidade constante no setor da
Cultura e do projeto neoliberal encampado pelo atual Governo Federal, o Nóis de
Teatro realizou no dia 25 de janeiro de 2020 a roda de conversa “2020 – Táticas
para Ficar Viva”. Com o objetivo de levantar reflexões, experiências, pontos de
tensionamento e estratégias de sobrevivência, convidamos quatro
artistas/produtores culturais da cidade de Fortaleza para compartilhar as
táticas que têm mobilizado diante do cenário de profunda precariedade em que
estamos vivendo.
Nelson Albuquerque -
Artista e coordenador do grupo Pavilhão da Magnólia, grupo atuante há 15 anos
na cidade de Fortaleza. Para a roda de conversa, Nelson trouxe também a
experiência de gestão da Casa Absurda, sede compartilhada entre o Pavilhão da
Magnólia e Cia Prisma das Artes;
Paula Yemanjá –
Multiartista: atriz, produtora e contadora de histórias, Paula traz para a roda
sua perspectiva de auto gestão, tendo em vista o empreendedorismo cultural encampado
por artistas solos. Paula trouxe também sua experiência dentro do Coletivo Os
Pícaros Incorrigíveis.
Vicente Wagner –
Fotógrafo e videomaker, é um dos idealizadores e produtores da Festa
Boomboomblack, espaço de reconhecimento e aquilombamento das comunidades negras
e periféricas.
Monique Cardoso – Atriz
e produtora, Monique trouxe sua experiência de produção a partir da Ato
Marketing cultural e dos dois coletivos de teatro que faz parte: o Ninho de
Teatro e o Manada Teatro.
Tendo como ponto de partida a própria conjuntura de produção
atual do Nóis de Teatro e o sinal vermelho da ausência de recursos para a
manutenção da nossa sede e da equipe de profissionais envolvidos num trabalho
fundamentado em 18 anos de ação na periferia de Fortaleza, a roda seguiu com a
mediação de Altemar Di Monteiro, gestor do grupo, artista e pesquisador em
teatro de rua. O encontro surgiu como um
espaço de escuta onde pudemos travar paralelos entre nossa realidade enquanto
Nóis de Teatro e a de outros atores da cultura no estado.
A seguir, com o objetivo de compartilhar as reflexões e
debates produzidos, apresentamos um relato das falas e seus principais
desdobramentos.
Relato Roda de Conversa
Iniciando a conversa com uma rodada de apresentações para que
cada um pudesse apresentar seu nome e o que está fazendo atualmente na cidade. Estiveram
presentes os e as integrantes do Nóis de Teatro (Henrique Gonzaga, Amanda
Freire, Nayana Santos, Edna Freire e Bruno Sodré), além de ouvintes que
contribuíram para o debate: Angélica Freire, Silviane Lima, Ivna Passos, Sol
Moufer, Giovane, Tatá Santana, e as crianças Zoey Estrela e Noá Estrela. A
sistematização apresentada abaixo segue os principais pontos de discussão.
Se te queres vivas, mova-se
Paula Yemanjá abriu o debate trazendo uma reflexão que fez a
partir do nome do encontro. Ela é quem nos pergunta: Como não desistir? Como
não se abalar diante do projeto de morte que nos é apresentado diariamente? É
preciso estarmos atentas e fortes. E criar rotas de fuga, espaços de
movimentação. Monique Cardoso também nos alerta que não existe nada mais cruel
que tirar o sonho de alguém e esse é o movimento que está acontecendo
atualmente com as pessoas. Precisamos estar resistentes pois essa é uma
estratégia pra nos deixar doentes e frágeis. Para isso, Paula Yemanjá é que nos
lembra a frase de Hilda Hilst: “Se te queres vivas, mova-se”. É necessário nos
reinventarmos. Se a conjuntura é outra, precisaremos também sermos outros.
Micro empreendedor Individual
Em sua fala, Paula Yemanjá dá uma grande importância ao debate
sobre a precarização do trabalho fincada na noção de MEI (Micro Empreendedor
Individual). Anuncia esse projeto como uma política institucionalizada do subemprego,
a tentativa sufocante de burocratizar a informalidade. Explica que dentro da
gestão do Coletivo “Os Pícaros
Incorrigíveis” sua principal questão tem sido essa, do quanto ela percebe que hoje
o mercado não oferece nenhuma perspectiva de crescimento enquanto MEI. Desse
modo, ela desafia: Para se manter viva é necessário reinventar minha disciplina
de trabalho. Insistir no uso do tempo, das percepções de contexto local e
global, na escuta sobre o próprio corpo e nas necessidades que ele vai
demandando ao longo do tempo-espaço. A disciplina é uma organização mental que
reflete no nosso corpo. Desse modo ela afirma que sua atual crise não tem a ver
com o seu fazer, mas sim sobre a gerência do seu fazer.
Fortalecer redes de parcerias
Sendo Paula uma “empreendedora individual”, dialogar com
pessoas e criar novas parcerias, sejam elas profissionais ou não, tem sido uma
constância. E essa tem sido uma das pautas primordiais colocadas por Vicente
Wagner ao apresentar a Festa Boomboomblack. Uma das prioridades é o cuidado com
a população negra. O coletivo busca parcerias de profissionais para
atendimentos psicológicos, além de suporte jurídico em questões relacionadas a
racismo. A intenção é mesmo de criar um quilombo urbano dentro da cidade pra se
tornar um ponto de apoio pra que a população negra chegue nesse espaço e se
sinta acolhida lá.
Nessa linha de pensar redes de parcerias, Nelson Albuquerque
propõe de forma assertiva que façamos mais coisas juntas. Juntar planos e
estratégias de coletivos pode ser uma saída para o momento de crise financeira
dos grupos de teatro da cidade. Ele dá alguns exemplos: fechar contrato com uma
gráfica pra impressão de um material de um grupo pode sair bem mais caro do que
fecharmos de dois ou três grupos juntos. Comprar tecidos em grande escala,
materiais de escritório ou outros provimentos pode ser uma estratégia de
economia. Pra isso, é necessário sairmos da nossa organização individual para
pensarmos em cooperativismo. Nelson ressalta com grande força que é necessário
pensarmos em estarmos juntas, voltar à ideia das parcerias que acabou se
diluindo diante da lógica de contratação provocada pelos editais.
Teatro Para a Infância é uma opção para ficar viva?
Paula explica que os espetáculos infantis acabam sendo também
uma maneira de atuar junto com a educação, abrindo possibilidades de estar
junto, por exemplo, com a Secretaria de Educação, que tem recursos maiores que
os da cultura. A infância é transversal e possui muitas possibilidades.
Contudo, alerta para o perigo da idealização latente ou para o equívoco de
alguns produtores que colocam essa produção como algo fácil. Pelo contrário,
demanda muito estudo, pesquisa e desejo para produzir algo interessante e que
não endosse a disneylização do teatro para a infância. Vale destacar que
os produtores e artistas de teatro para a infância tem se atido com delicadeza
à atual situação do país diante do que o Presidente poderá aceitar que seja
produzido para a infância. É necessário estarmos atentas para as portas que
esse mesmo governo abriu, pois como educadores nós podemos adentrar espaços que
eles não imaginavam que estariam ao nosso alcance.
Nelson nos alerta que o mercado de teatro infantil pode ser
comparado ao teatro empresa. Existe sim um mercado voltado para isso, mas caso
seja sua opção o interessante é entrar de cabeça, pois também não é nada fácil.
A gente precisa de dinheiro pra fazer teatro ou a gente faz
teatro e precisa de dinheiro?
Nelson inicia sua fala explicando como funciona os
planejamentos no Pavilhão da Magnólia. Pra isso, ele lança uma pergunta muito
importante: “A gente precisa de dinheiro pra fazer teatro ou a gente faz
teatro e precisa de dinheiro?”
Ter um repertório se torna fundamental para que se possa
vender e ter os resultados desses trabalhos. Se somos um grupo de teatro,
precisamos investir pesado no nosso produto: espetáculos teatrais. No Pavilhão,
existem metas de trabalho (exemplo: apresentar 50 vezes) e isso é seguido de
forma muito séria. A Casa Absurda também é um local que acolhe outras linguagens
e, com isso, acaba gerando recursos para o grupo. A sede acaba se tornando
sustentável: tudo que foi investido nela acabou retornando e com os eventos que
acontecem eles acabam por garantir o gastos mensais.
Black Money e dinheiro periférico: a gratuidade tem um limite
Vicente inicia sua fala com uma saudação a Xangô e após isso
ouve uma errata. Exu é o Orixá que saudamos primeiro, para abrir nossos
caminhos. Em seguida reverenciamos Xangô por sua regência neste ano que segue,
o Orixá que guia o ano de 2020 e que faz parte da identidade visual da nossa
Roda de Conversa. Para abrir nossos caminhos durante o ano, é importante não
esquecermos a espiritualidade e os conceitos que guiam nossa experiência de
mundo. Assim, Vicente segue falando que foi a partir de uma experiência de
racismo que ele sofreu no bairro Benfica que surgiu a ideia de fazer uma festa
que fosse feito por pretos e para pretos: uma festa com recorte racial que
pudesse agregar a população negra de Fortaleza.
A Boomboomblack se denomina como uma equipe de som, um projeto
preocupado em incentivar o Black Money: um espaço onde as pessoas que
estão frequentando saibam que a grana que estão gastando está beneficiando
também pessoas negras. A partir das edições, fazem a escolha de ter um tema,
sempre trabalhando com a temática negra, fazendo com que os próprios Dj’s e os
frequentadores acabem também pesquisando e aprendendo mais sobre a cultura
negra. A festa acontece com recursos próprios porém, diante do crescimento da
festa, viu-se a necessidade de se inscrever em editais públicos para que se
tenha um recurso maior e que a festa possa chegar em outros espaços periféricos
da cidade.
Pensando nessa relação entre espaço público e gratuidade,
Monique Cardoso aponta que “a gratuidade tem um limite”, que nós acostumamos o
nosso público a não pagar pelos bens culturais. Desse modo, para que não
dependamos exclusivamente do poder público, é necessário que nosso trabalho
também seja custeado pelo público, pelos espectadores da cidade.
A partir da discussão do Black Money, Altemar traz para o
debate a importância de pensarmos na circulação de uma “grana periférica”.
Sairmos do pensamento de que a periferia é somente pobreza e miséria é
importante para que possamos pensar na circulação da riqueza da periferia.
Trabalhar com um processo de formação de financiadores das próprias periferias
pode ser, quem sabe, uma saída para o momento de crise e também para o
fortalecimento dessa rede de apoio e circulação da riqueza do bairro. O desafio
é convencer os empresários e comerciantes do bairro a financiar as ações do
grupo. Pensar no público como um gestor de nossas ações também é uma
alternativa viável: formar plateia que se conscientiza de que não é preciso
sair do bairro para ter acesso à teatro, festas, música, arte de qualidade.
Ousadia e Realidade
Monique ressalta a importância desse encontro e fala que é o
primeiro lugar que veio com essa proposta de criar táticas pra se manter vivo
na situação que o país se encontra agora. A partir da sua experiência como
produtora, ressalta a importância dos planejamentos para que as coisas
funcionem: é necessário ousadia num planejamento estratégico, mas também traçar
metas reais para que os projetos funcionem. Nossas metas precisam ser
exequíveis. Precisamos sim olhar a frente, ter visão de futuro, mas temos em
vista também o que podemos dar conta para não se atropelar.
Mobilizar sonhos e desejos
Monique se pergunta: como trazer nossos sonhos pessoais pra
dentro dos trabalhos? Como fazer com que os artistas que estão dentro do grupo
não sejam vistos somente pelo grupo, pelo nome do grupo e sim por suas
vivências como artistas?
Altemar coloca que num tempo de individualização das
carreiras, é mais que importante que invistamos nos nomes dos artistas de um
coletivo como potências dentro de um mercado. Algo que entra em sintonia com o
que Paula Yemanjá coloca: “um coletivo forte é composto por personalidades
fortes”, por isso é importante darmos o devido valor a cada participante de
uma ficha técnica.. Por isso mesmo que Nelson Albuquerque nos fala da importância
de pensarmos na noção de “gestão de carreira”. Em linhas gerais, discutimos que
é necessário linkar os desejos pessoais dos participantes de um coletivo com o
desejo coletivo que se coloca como meta.
Nessa linha de pautar os desejos e estratégias coletivas,
Yemanjá explica, então, que a organização dos Pícaros Incorrigíveis é
horizontal: todos são responsáveis por tudo, cada um colabora com o que tem
mais habilidade e assim no final se tem tudo pronto. É necessário, pra isso dar
certo, investir na autonomia dos participantes e uma disciplina regular e
constante.
Trocar resistência por Superação
Por fim, Giovane, do Coletivo Crítica Radical, nos trouxe uma
provocação muito importante. Ele nos desafia a trocar a palavra “resistência”
por “superação”. Ele argumenta que a resistência só resiste, ela não produz
algo novo, já a superação propõe algo, está no nível da ação efetiva: essa será
a nova palavra que pode substituir resistência.
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Afim de sistematizar os principais pontos levantados durante
a Roda de Conversa, Altemar Di Monteiro, resgatou na memória dos participantes
os cinco principais pontos levantados:
1 – Resistir (e superar) ao projeto de morte encampado pelas
atuais políticas de Governo;
2 – Investir numa disciplina de trabalho constante;
3 – Fortalecer a rede de parcerias para que saiamos da
individualização do nosso fazer;
4 – Tecer paralelos constantes entre os desejos individuais e
os coletivos para que um não acabe por sufocar o outro;
5 – Mobilizar o público como nosso principal parceiro na
realização de nossas atividades;
Fortaleza, 03 de fevereiro de 2020
Relatoria: Altemar Di Monteiro e Nayana Santos
2 comentários:
Que fortificante ter acesso a esse registro escrito do encontro. Fiquei movido pelas questões levantadas e interessados por mais rodas de conversa nessa pegada. Parabéns Nois! E Avante!
Muito bom esse debate! Avante sempre!
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