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ENCRUZA DA NEGRURA / Por Roberta Kaia

Posted by Nóis de Teatro On 16:41 No comments




Tento vasculhar na memória os fatos que marcaram

essa geração: Navios Negreiros.

Desfaço, cavando buracos e espalhando o rastro que

me trouxe até aqui.

Neste momento chorar não convém e dentro do tiro

cabem várias risadas.

 

Um rebuliço aqui e este lugar já era!

A gente talvez vire a cara para a próxima vítima

e confunda a liberdade com prisão.

 

Gosto de sentir a vida, mas por vezes ela é

doente demais e a ferida colonial demora sarar.

Não bastando tantas, o coração exposto

sem entrar no corpo, sem conseguir de novo diante

do sufoco, sobrevier as Maafas do cotidiano.

 

Me invadem as causas raivosas dos que pelejam

comer o pão e só tem cachaça pra embriagar-se

dormir. Percebo que nas favelas somos pessoas famintas de justiça, que gritam em uníssono para ninguém escutar.

 

Ecoa nos meus ouvidos uma música lenta

que leva para dentro das casas enlodada da chuva, um breve murmurinho de que tudo vai passar num piscar de olhos, olhos de crianças.

E não passa… Nunca passa.

 

Percebo ao fechar os olhos,

os risos em volta que incidem um largo choro.

Um tiroteio rasga as risadas: Navios negreiros.

 

-Cadê o meu menino?

-O meu neguim?

-Cadê sua chinela e suas moedas?

-Onde foi parar o seu olho?

-Quem levou o seu riso?

 

Em cortejo ao cemitério.

 

Nós somos vítimas da polícia

do beradeiro que cala a nação.

Do badalo do sino da igreja em

que os esfomeados agonizam sem

perdão.

 

Somos o choro que não cessa das mães calejadas de sofrer!

 

Cavando a cova dessa obsoleta democracia de tanto cavalgar em seu cavalo manco, cai!

Os dias passam como um vendaval, cegando os olhos, fazendo esmorecer os homens brancos que de tal força nem carecem mais de acentos para suas bundas moles, no entanto é incompatível seu status em pé

-não fazem nada a não ser olhar seus gados cheios de carrapatos morrendo em seu pasto seco.

De longe se vê o brilho da crina de seus galos de briga, no meio da multidão. Com seus esporões afiados ferem todos os pintos de uma galinha sem proteção.

Jogando-a no chão com suas últimas penas.

 

Sofro dores internas como se em mim uma chaga aberta estivesse pulsando.

Vejo com olhos de sangue todo meu povo, a minha gente da minha carne também sofrendo e como se não bastasse o peso das mochilas, dos livros, da história do cotidiano, acrescenta-nos a pobreza e a falta de compreensão que aliena e distorce toda versão imposta em forma de bosta, igualmente sendo a maravilha universal de nossas vidas e assim decretando disfarçadamente o sofrimento em forma de televisão colorida e imagens futuristas de um passado de ganância e corrupção.

 

É de contar nos dedos o que ainda temos.

 

Não quero com isso gerar conflito -esses existenciais que nos compõe.- Sugiro acreditarmos que tudo vá passar quando em nossas camas confortáveis as nossas cabeças pesadas deitar. E para aquelas também pesadas sem cama sequer, juro que quando chegar a hora essa terra que nos come, saberá bem nos manejar e cuidar dos nossos restos mortais como nenhum homem branco cujo talento maior dentre muitos é privilegiado e santo no meio de tantas e tantos de nós. Juro também que se não houver inferno um paraíso será reservado para quem não tem aqui um momento diante de Deus, que somos nós esses dejetos dentro de um saco jogado no espaço a mercê sei lá de quê, não queremos ter conversa com diabo nenhum que queira roubar quem já tem um fim determinado ruim nas mãos de quem tem sim, poder para matar. 




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