Em
1863 a província do Ceará decretou que não existiam mais indígenas neste
território, beneficiando os ladrões de terra e os traficantes de escravizados.
Abrindo assim, uma lasca falaciosa entre o esquecimento e a memória nativa.
Deixando turva a identidade de um povo. Forçando mais uma vez populações
minorizadas a experienciar apenas o campo da subalternidade. Tornando indígenas
em flagelados e flagelados em favelados.
O
ceará-colônia, ceará-pecuária, ceará-seca, ceará-binário, ceará-branco é um
delírio criado para beneficiar poucos, para manter casarões, para legitimar a
existências de sinhôs e sinhás, para confundir a retomada. Há um delírio
romântico na literatura que forja o nascimento desta Terra. José de Alencar em
Iracema, escrito em 1865, nega a presença de negres diasporiques e cria um
Ceará feito a partir da “miscigenação democrática” entre brancos e indígenas.
Apagando a história de bravura e coragem que os povos nativos desta Terra
aliançado aos povos indígenas de África fizeram em defesa de suas
cosmopercepções e ancestralidades.
Assim,
me pergunto: os arquivos escritos por mãos brancas determinam a verdade sobre a
existências de populações nativas e racializadas? E num só sopro digo que não.
É preciso encarar a historiografia como um lugar a ser disputado. Pois como já
questionada Juão Nyn: “é possível demarcar terrytóryos fýsycos sem
demarcar
ymagynáryos?”. É preciso sair da binaridade racial e expandir o campo de
retomada pelo caminho da ancestralidade, tudo isso como muita responsabilidade
e compromisso. É preciso entender as polifônicas rotas de identidade dentro do
Siará.
Outrora
em minha vida me coloquei como uma pessoa cis e negra. Eu estive em um lugar,
diferente, por vezes, de pessoas que estão fazendo a retomada e nunca se
sentiram pertencentes identitariamente. Mas o que isso implica em minha
retomada? Acredito na encruzilhada, na cruza, na tranca-e-destranca,
desmoralizo a pureza Percebo a retomada com uma prática cara, sem volta e
fortalecedora. Minha retomada leva em consideração minha corpa travesti, minha
missão espiritual no Abassá de Omolu Ilé Iansã, meu entendimento que sou uma corpa
em transmutação, as narrativas de minha família materna e paterna, os
territórios ancestrais onde nasceram meus avôs.
Com
a retomada ampliei minhas fugas, minhas rotas, minhas formas de ver meu povo da
quebrada. Pois como já diria Kae Guajajara “eu sou indigena, indigena
favelada”.
Eu
fico imaginando se um dia o alzheimer colonial cair por terra e A Terra nos
relembrar quem somos de verdade. Imagina, todas as guerreiras e guerreiros indo
buscar o que foi tomado. Imagina, a gente acessando as memórias ancestrais,
praticando nossas tecnologias de sobrevivência e cura com as mais velhas e as
kuriminhas. Imagina, a favela toda se entendendo como kilombo-aldeia.
É
para isso que a gente re-tornou, re-voltou, re-tomou. Para não esquecer mais
quem a gente sempre foi e sempre vai ser.
Fortaleza,
26 de setembro de 2021
com re-volta e sentimento de
in-corpor-ação
as parentas que vem se achando
(aconchegando)
por mais que essa terra toda esteja
banhada de sangue
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