Por: Henrique Gonzaga
Começou a imersão em comunidades
quilombolas para a pesquisa de montagem do novo espetáculo do Nóis de Teatro,
com o projeto “Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro”, vencedor do
Prêmio Arte Negra, da Funarte. Esse breve relato vem mostrar um pouco do que
foi a intensa visita a Comunidade Quilombola dos Sousa, no município de
Porteiras, no Ceará. E nesta data em que se comemora a abolição da escravatura
no Ceará, esse relato reflete do que ainda, nós negros, temos que nos libertar.
A viagem foi cansativa, mas ninguém
disse que seria fácil. Foram oito horas de ônibus e mais um “bucado de ladeiras
de moto”, mas tudo isso não era nada comparado ao tamanho da nossa ansiedade
por esse momento. Ao chegarmos ao Sítio Vassourinha fomos recebidos por um dos
sorrisos mais bonitos que já vi, o da senhora Maria de Tiê, presidente da
associação de quilombolas do município, que nos recebeu com um abraço forte,
abraço de “sejam muito bem vindos.” Esse abraço nos abriu os caminhos do
quilombo que começamos a desbravar logo pela manhã.
Ao chegarmos, nos encaminhamos para a
casa que ia nos hospedar, a casa de Madrinha Lia ou Cumade Leuzinha, ou melhor
ainda a “ Rainha do Quilombo” como assim passamos a chamar a pessoa que
conquista todos com sua alegria. Eu e as atrizes do Nóis de Teatro, Amanda
Freire e Dorotéia Ferreira, juntos com Cumade Leuzinha, Dona Maria de Tiê e o
Senhor João Manuel percorremos quase o quilombo todo, e olhe que é grande,
convocamos os quilombolas para uma grande conversa no dia seguinte. Cada casa
um sorriso maior, uma merenda melhor e uma história melhor pra ser ouvida.
Histórias nem sempre alegres, mas contadas com um sorriso largo no rosto de
quem já passou por muita dificuldade e ainda passa, mas ainda tem muita força
pra lutar.
Ouvimos de tudo, histórias dos
antepassados do senhor João Manuel, que com mais de oitenta anos tem muita
força e alegria para nos acompanhar nas visitas aos outros quilombolas e a
visão dos jovens do quilombo.
O domingo (23.03) estava sendo
esperado por toda a comunidade. De manhã cedo bandeirinhas estavam enfeitando o
terreiro, as panelas já estavam no fogo e as risadas e histórias preenchiam a
casa de Cumade Leuzinha, que acolhia cada pessoa que chegava com muita alegria.
Toda aquela movimentação na casa me trouxe a sensação de uma grande família que
se reuni no domingo pra almoçar, mas não era só sensação ali é uma grande família
que seja Sousa ou Araújo, eles estão juntos comemorando a vida.
O restante do Nóis de Teatro chegou e
o tambor já preenchia o quilombo, era o coco que estava chegando, a dança do
coco é uma das maiores manifestações culturais do Quilombo dos Sousa. As mulheres
já estavam enfeitadas, maquiadas, com saias enormes só esperando o tocador pra
começar a festa e assim aconteceu, o tocador chegou e o coco começou.
Era muita alegria, parecia que não
existia problemas naquela comunidade, era só sorriso e muito fôlego e assim
dançamos muito, mas não tanto quanto eles. Podíamos ver em cada um que dançava
o coco, o orgulho de estar mostrando aquela manifestação pra gente e quanto
mais a poeira subia, mais as sandálias se arrastavam, os cantos aumentavam e a
alegria chegava em “Nóis” como um choque de felicidade.
O coco traz a alegria pra comunidade,
mas não é só de alegria que vivem aquelas pessoas. As dificuldades são muitas,
algumas iguais as que passamos aqui na cidade e outras bem particulares.
Andando pelo quilombo soubemos que existem quilombolas que não aceitam e
renegam a sua comunidade, a sua cor e a sua história, isso tudo pelo
preconceito. Assim, também, como tem os que não nasceram no quilombo, mas hoje
são quilombolas de coração e vivem na comunidade.
Os problemas não acabam no
preconceito, assim como na periferia, muitos quilombolas não tem emprego e
vivem com pequenos roçados e benefícios do governo, e isso os impede de ter uma
educação melhor para os seus filhos e uma melhor condição de vida. Os problemas
da comunidade dos Sousa refletem uma questão que vem desde os tempos da
escravidão. No dia 25 de março 1884, a cidade de Redenção, antigamente chamada
de Acarape, foi a primeira cidade a abolir a escravatura, mas com essa abolição
vieram outros problemas que continuaram machucando o negro no decorrer da
história, talvez uma dor maior do que a dos açoites, a dor da fome, da falta de
moradia, da falta de educação e de oportunidades. Essa dor ainda lateja nos
quilombolas e nas periferias, mas do mesmo jeito que o açoite continua batendo
o povo continua lutando por dias melhores e a luta também é uma das tradições
desse povo.
Em meio a toda problemática a dança
do coco alivia um pouco a dor daqueles quilombolas, o que também ajuda muito é
a Umbanda, religião praticada por boa parte dos quilombolas, que também é alvo
de preconceito por parte de outros quilombolas.
Conhecemos o terreiro do senhor
Ricardo, que pra mim foi a parte mais forte, pois há muito tempo não ia a um
terreiro de Umbanda. O terreiro tem uma simplicidade que o torna especialmente
lindo e mais do que isso, aquele terreiro é também um símbolo de resistência da
comunidade, onde a religiosidade e os rituais dos seus antepassados são
mantidos com a mesma fé e beleza de antigamente. O senhor Ricardo fala do seu
terreiro com muito orgulho, lembra que é um dos poucos que existem na
comunidade, justamente pelo preconceito que existe nela, mas isso em nada abala
o seu trabalho que ele diz ser uma missão e que desempenha com toda a alegria.
O fim de semana foi muito mais do que
as palavras podem relatar, a alegria de Cumade Leuzinha, a fé do senhor
Ricardo, as histórias do Senhor João Manuel, a comida nos oferecida pela Dona
Socorro e o Senhor Nó, a alegria das crianças Pedro, Wiliam, Radja e muitas
outras. A alegria e simpatia da cantora do coco Dona Maria de Tiê e toda a sua
família. Saímos de lá com o coração apertado e com muitos pedidos de volta e
com certeza voltaremos, pois agora somos mais alguns quilombolas de coração.
Agradecemos a todos que fizeram dessa
pesquisa uma realidade na Comunidade Quilombola dos Sousa, ao senhor Raimundo
Inácio que nos ajudou na articulação, a senhora Zilma Minel que nos acolheu
muito bem e a todos, mas todos mesmo, que não deu pra citar no texto, mas que
fizeram muito por “Nóis” e por nossa pesquisa. Em dezembro voltaremos e até lá,
como dizia o Pai José Pereira, muito AXÉ e que Deus ilumine a nossa caminhada.
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