Crítica do
Espetáculo "Quase Nada", participante da Programação do X Festival de
Teatro de Fortaleza | Por Soraya
Belusi
Algo
aconteceu. Há a instalação do mal-estar, que conflita com a tentativa de manter
a aparência de uma certa felicidade. Entre tapas, beijos e risos, um casal
tenta se sustentar. Protegidos pelo ambiente familiar, parecem esconder-se como
se soubessem ser observados pela fresta de uma janela. Um buraquinho da
persiana, algo que deixe vazar uma verdade que não se deve conhecer. Um
mistério se instala, uma criança é morta a queima-roupa, um casal com crise –
ou não – de consciência, uma mãe que chora – ou não – a morte do filho. Ninguém
sabe. É isso que lhes gera alívio. Todo mundo sabe? A dúvida do que ainda pode
acontecer insiste em lhes perseguir. O estrondo que não os abandona. O medo
constante.
É esta
percepção, para qualquer lado que se olhe, de que algo anda muito errado que impregna
todo o texto de “Quase Nada”, escrito pelo dramaturgo cearense Marcos Barbosa
no início dos anos 2000 e que ganha montagem do grupo Nóis de Teatro, sob
direção de Altemar di Monteiro. O espetáculo, apresentado no X Festival de
Teatro de Fortaleza, apresenta uma cidade fraturada, dividida entre o dentro e
o fora, o público e o privado, o coletivo e o individual, o rico e o pobre, a
segurança e a ameaça, o que se vê e o que se esconde, o que se esconde, o que
se fala e o que se cala.
A trama de
“Quase Nada” apresenta um casal de classe média alta que, diante da presença inesperada
de uma criança que se aproxima do carro deles no semáforo, atira no menino. Ainda
afetados pelo fato, que pretendem ignorar dali em diante, são acometidos pela
visita de uma senhora que se identifica como mãe do garoto e que afirma ter estemunhado
o crime. A partir desses dois pontos de vista iniciais, coloca-se em evidência,
de maneira dialética, questões sobre ética, divisão de classes e relações de
poder. Há ainda a chegada de um terceiro elemento, que mexe, mais uma vez, com
a distribuição de forças que atuam na narrativa.
É a partir
do íntimo que “Quase Nada” lança seu olhar para o público. É na proteção de seu
apartamento que o casal se refugia da ameaça que vem das ruas e onde protegem
também suas emoções de serem reveladas. O que lhes é externo está fora das
janelas, e parece não lhes dizer respeito. Procuram se convencer de que apenas
fizeram o que tinham que fazer. O silêncio,
longas pausas incômodas, revela aquilo que não se tem coragem de admitir.
A
encenação de Altemar di Monteiro ressalta essa noção de dentro e fora, de
público e privado, de revelar e esconder, de verdade e mentira. A relação
cinematográfica que estabelece com o espaço, como se as cenas se organizassem
em takes, para serem filmadas, recortando assim o olhar do espectador,
permitindo que tenha sempre sua visão incompleta da cena, traz para o
espetáculo a sensação já propagada pelo texto de que algo sempre se mantém
invisível.
O dentro e
o fora também aparece no jogo que se faz com o cenário, módulos de persianas, que
se movimentam pelo espaço. Pequenas janelas para o íntimo, o privado, o que não
se pretende ser visto. Os personagens ora se escondem ora se “confessam” para o
público, como se tivessem consciência de sua própria representação, como se
“encenassem” para uma câmera. A configuração do espaço trabalha ainda como
elemento opressor, que gera um enquadramento do olhar ao mesmo tempo em que
dialoga com os conflitos psicológicos dos personagens.
O jogo
metalinguístico, em que as rubricas invadem o texto, funcionam não apenas como elemento
de distanciamento, como também lançam camadas de dúvidas sobre o que se vê, o que
se diz e o que se busca representar, contribuindo nessa falsa percepção de que
tudo está em seu lugar e que nada aconteceu – ou quase nada.
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