Por
Altemar Di Monteiro
Quatorze
anos se passaram desde que a Política de Cidadania Cultural passou a ser
diretriz estruturante do pensamento institucionalizado da Cultura no Brasil.
Tempo suficiente para percebermos uma reviravolta significativa no cenário de
produção, difusão e fruição cultural nos mais diversos territórios e patentes.
Dos becos e vielas, dos assentamentos e comunidades quilombolas, indígenas e
ribeirinhas, surge uma arte que grita uma performance ligada a própria
história, revelando um empoderamento identitário que tem desestabilizado
conceitos historicamente semeados e difundidos como padrão e status de arte.
Mulheres, negras e negros, lésbicas, gays, bissexuais, trans e travestis que
não aceitam mais serem representados, mas que lutam pelo seu lugar na produção
de um mundo mais justo e igualitário. A crise da representação dá lugar ao
paradigma da representatividade, colocando em jogo ficção e realidade, arte e
vida, diluindo fronteiras e reacertando as noções e pressupostos que guiam os
fazeres e processos. A velha arte, aquela marcada pelo padrão masculino,
heteronormativo e branco vai sendo colocada em xeque para a emergência da
escuta de uma voz abafada há séculos (talvez por isso o nó entalado tenha
gerado, em alguns casos, um estado enérgico de revanche, uma vingança velada,
aquela velha máxima do oprimido que deseja virar opressor).
Nesse
mesmo contexto, a cidade começa a disparar, de todos os lugares, uma infinidade
de movimentos e expressões em arte e cultura que reivindicam o seu espaço na
teia simbólica e afetiva da fabulação do que se vê como arte no mundo
contemporâneo. A cartografia topográfica, geográfica e econômica da cidade
passa também a dar sinais do que se tem como lugares reiterados como centros de
poder que relegam outros territórios como espaços abafados à marginalidade e ao
silenciamento. A periferia urbana, para além do discurso da “contrapartida
social”, vê-se como território de afeto, de beleza, de produção de saberes e
linguagem. Reconhecendo a singularidade do território onde habita, surge um
levante de artistas que, assim como eu, militam com os pés fincados ao chão,
concordando com Frei Betto ao dizer que a cabeça pensa a partir de onde os pés
pisam. Nosso lugar na cidade vai sendo percebido como ponto de singularidade no
rizoma complexo de afetos que compõem a imagem do urbano e nossa arte, atenta a
esse esquema, reveste-se de potência ao jogar com essa possibilidade:
empoderamento territorial.
Talvez
estejamos lutando por um sistema de cultura que realmente entenda a diferença
enquanto potência, a multiplicidade e pluralidade como resultado de processos
bem mais complexos do que os paradigmas aviltantes do que se reitera como Arte
Oficial. Exatamente aqui está a relevância de pensar a periferia pela via da
antiarte, subvertendo as posições intelectualistas e esteticistas ao reconhecer
o suburbano como viés dissensual do urbano e entendendo a potência da periferia
na sua condição periférica mesma. Alguns vão chamar isso de bairrismo, mas os
fluxos entre o bairro e a cidade, a cidade e o mundo são tão inumeráveis que
seria ilusão pensar que esse lugar não se afeta e se transforma pela máquina
mundial ou que, pelo contrário, ele também não redesenha o mundo contemporâneo.
Exatamente por isso é que incomodamos tanto. Quatorze anos foram tempo
suficiente para alimentar um ressentimento altamente perigoso na classe branca,
masculina e heterossexual. Os discursos de ódio, cada vez mais naturalizados,
vão mostrando a face obscura desse jogo de afetos que está marcado pelo
sentimento claro de retomada do lugar que se perdeu. A ascensão da direita
conservadora é sinal dessa máxima e, talvez, seja possível dizer que os
discursos que colocam em xeque a relevância dos espaços de construção de poder
identitário não façam nada mais do que contribuir com esse levante rançoso
travestido de complacência e igualdade.
Para mim,
em pleno 2016, dizer que sou um artista de periferia é entender que antes mesmo
de ser artista eu sou alguém no mundo: sujeito atravessado por várias memórias,
histórias refeitas diariamente e que se expressam na forma como vejo e
transformo o mundo. Não sou SIMPLESMENTE ARTISTA. Foi-se o tempo em que ser
artista estava marcado por uma identidade una, isolada em sua significância
simbólica, marcada em essência pelos padrões normatizadores das “belas artes”.
Hoje, para mim, ser artista é ligar-se a muitas outras identidades, até porque
os atravessamentos e possibilidades são múltiplos, revelando um devir-outro que
nos leva sempre para outro lugar e não nos fixa, sequer, no território isolado,
formatado e cooptado da Arte. Ser artista de periferia, para mim, é entender
meu lugar como território da diferença e perceber que há muita potência a ser
desbravada nesse lugar. Alguns poderão chamar de limitador, de artista de um
personagem só, de um território fixo: ledo engano. Cada vez mais me parece que
a potência do plural está no especificidade do singular, que a política do
mundo está nas micropolíticas do cotidiano, e que a potência de ação e
comunicação da arte está nas conjunturas e contextos das suas processualidades
e não apenas na obra-fixa manufaturada de um produto a ser vendido.
Há muitas
questões em jogo, é certo, inclusive assumir para si, nesse processo infinito
de implicação mutua, que todas essas perspectivas de produção identitária já
foram cooptada pela economia mundial e pelos próprios circuitos de produção
cultural. Reconhecer a identidade, não sejamos hipócritas, também tem sido a
forma legitimada de “ganhar o edital”, de ganhar o próprio pão e manter-se
economicamente ativo no mercado. Embora a democracia cultural ainda não seja de
fato um paradigma resolvido, hoje já é possível falar que há um mercado
amplamente difundido como “cultura de periferia”, contudo falar que a periferia
já seja um território hegemônico me parece demasiado perigoso ante ao
ressentimento de classe tão em voga nos tempos em que vivemos. Discutir
pós-identidade, mesmo no plano do ideal, parece-me enérgico e urgente, contudo,
penso que ainda é necessário muito tempo para que possamos analisar com destreza
os impactos positivos-negativos do empoderamento identitário nos segmentos de
produção cultural e criação em artes.
Enquanto
isso, voltamos a incomodar. Continuaremos nos afirmando como artistas de
periferia, artistas negros, artistas trans, artistas travestis, artistas de
assentamentos rurais, artistas ativistas num mundo onde a igualdade ainda é
sonho, mas a diferença é altamente perigosa e perseguida. Para encerrar esse
pensamento de domingo, deixo a frase do nosso grande Boaventura de Souza
Santos, talvez ela elucide bem melhor meus mais profundos desejos na escrita
desse textão: "Lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos
discriminem. Lutar pela diferença sempre que a igualdade nos descaracterize”.
Axé!
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