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Artista de Periferia?

Posted by Nóis de Teatro On 21:47 No comments

Por Altemar Di Monteiro

Quatorze anos se passaram desde que a Política de Cidadania Cultural passou a ser diretriz estruturante do pensamento institucionalizado da Cultura no Brasil. Tempo suficiente para percebermos uma reviravolta significativa no cenário de produção, difusão e fruição cultural nos mais diversos territórios e patentes. Dos becos e vielas, dos assentamentos e comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas, surge uma arte que grita uma performance ligada a própria história, revelando um empoderamento identitário que tem desestabilizado conceitos historicamente semeados e difundidos como padrão e status de arte. Mulheres, negras e negros, lésbicas, gays, bissexuais, trans e travestis que não aceitam mais serem representados, mas que lutam pelo seu lugar na produção de um mundo mais justo e igualitário. A crise da representação dá lugar ao paradigma da representatividade, colocando em jogo ficção e realidade, arte e vida, diluindo fronteiras e reacertando as noções e pressupostos que guiam os fazeres e processos. A velha arte, aquela marcada pelo padrão masculino, heteronormativo e branco vai sendo colocada em xeque para a emergência da escuta de uma voz abafada há séculos (talvez por isso o nó entalado tenha gerado, em alguns casos, um estado enérgico de revanche, uma vingança velada, aquela velha máxima do oprimido que deseja virar opressor).

Nesse mesmo contexto, a cidade começa a disparar, de todos os lugares, uma infinidade de movimentos e expressões em arte e cultura que reivindicam o seu espaço na teia simbólica e afetiva da fabulação do que se vê como arte no mundo contemporâneo. A cartografia topográfica, geográfica e econômica da cidade passa também a dar sinais do que se tem como lugares reiterados como centros de poder que relegam outros territórios como espaços abafados à marginalidade e ao silenciamento. A periferia urbana, para além do discurso da “contrapartida social”, vê-se como território de afeto, de beleza, de produção de saberes e linguagem. Reconhecendo a singularidade do território onde habita, surge um levante de artistas que, assim como eu, militam com os pés fincados ao chão, concordando com Frei Betto ao dizer que a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Nosso lugar na cidade vai sendo percebido como ponto de singularidade no rizoma complexo de afetos que compõem a imagem do urbano e nossa arte, atenta a esse esquema, reveste-se de potência ao jogar com essa possibilidade: empoderamento territorial.

Talvez estejamos lutando por um sistema de cultura que realmente entenda a diferença enquanto potência, a multiplicidade e pluralidade como resultado de processos bem mais complexos do que os paradigmas aviltantes do que se reitera como Arte Oficial. Exatamente aqui está a relevância de pensar a periferia pela via da antiarte, subvertendo as posições intelectualistas e esteticistas ao reconhecer o suburbano como viés dissensual do urbano e entendendo a potência da periferia na sua condição periférica mesma. Alguns vão chamar isso de bairrismo, mas os fluxos entre o bairro e a cidade, a cidade e o mundo são tão inumeráveis que seria ilusão pensar que esse lugar não se afeta e se transforma pela máquina mundial ou que, pelo contrário, ele também não redesenha o mundo contemporâneo. Exatamente por isso é que incomodamos tanto. Quatorze anos foram tempo suficiente para alimentar um ressentimento altamente perigoso na classe branca, masculina e heterossexual. Os discursos de ódio, cada vez mais naturalizados, vão mostrando a face obscura desse jogo de afetos que está marcado pelo sentimento claro de retomada do lugar que se perdeu. A ascensão da direita conservadora é sinal dessa máxima e, talvez, seja possível dizer que os discursos que colocam em xeque a relevância dos espaços de construção de poder identitário não façam nada mais do que contribuir com esse levante rançoso travestido de complacência e igualdade.

Para mim, em pleno 2016, dizer que sou um artista de periferia é entender que antes mesmo de ser artista eu sou alguém no mundo: sujeito atravessado por várias memórias, histórias refeitas diariamente e que se expressam na forma como vejo e transformo o mundo. Não sou SIMPLESMENTE ARTISTA. Foi-se o tempo em que ser artista estava marcado por uma identidade una, isolada em sua significância simbólica, marcada em essência pelos padrões normatizadores das “belas artes”. Hoje, para mim, ser artista é ligar-se a muitas outras identidades, até porque os atravessamentos e possibilidades são múltiplos, revelando um devir-outro que nos leva sempre para outro lugar e não nos fixa, sequer, no território isolado, formatado e cooptado da Arte. Ser artista de periferia, para mim, é entender meu lugar como território da diferença e perceber que há muita potência a ser desbravada nesse lugar. Alguns poderão chamar de limitador, de artista de um personagem só, de um território fixo: ledo engano. Cada vez mais me parece que a potência do plural está no especificidade do singular, que a política do mundo está nas micropolíticas do cotidiano, e que a potência de ação e comunicação da arte está nas conjunturas e contextos das suas processualidades e não apenas na obra-fixa manufaturada de um produto a ser vendido.

Há muitas questões em jogo, é certo, inclusive assumir para si, nesse processo infinito de implicação mutua, que todas essas perspectivas de produção identitária já foram cooptada pela economia mundial e pelos próprios circuitos de produção cultural. Reconhecer a identidade, não sejamos hipócritas, também tem sido a forma legitimada de “ganhar o edital”, de ganhar o próprio pão e manter-se economicamente ativo no mercado. Embora a democracia cultural ainda não seja de fato um paradigma resolvido, hoje já é possível falar que há um mercado amplamente difundido como “cultura de periferia”, contudo falar que a periferia já seja um território hegemônico me parece demasiado perigoso ante ao ressentimento de classe tão em voga nos tempos em que vivemos. Discutir pós-identidade, mesmo no plano do ideal, parece-me enérgico e urgente, contudo, penso que ainda é necessário muito tempo para que possamos analisar com destreza os impactos positivos-negativos do empoderamento identitário nos segmentos de produção cultural e criação em artes.


Enquanto isso, voltamos a incomodar. Continuaremos nos afirmando como artistas de periferia, artistas negros, artistas trans, artistas travestis, artistas de assentamentos rurais, artistas ativistas num mundo onde a igualdade ainda é sonho, mas a diferença é altamente perigosa e perseguida. Para encerrar esse pensamento de domingo, deixo a frase do nosso grande Boaventura de Souza Santos, talvez ela elucide bem melhor meus mais profundos desejos na escrita desse textão: "Lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem. Lutar pela diferença sempre que a igualdade nos descaracterize”. Axé!

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