Por Murilo Ramos
Esse segundo mês de
experiências, laboratórios e viveres dentro do projeto Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro vem reafirmar certezas e problematizar conceitos que
a nossa sociedade “político-midiática” nos empurra goela abaixo. Foi um mês de
viagens , não só no que diz respeito à distancias percorridas entre Fortaleza e
Maranhão (Comunidade Felipa, Santo Antônio dos Pretos, Quilombo Urbano), mas
também viagens interiores e pessoais à respeito dos objetivos e o que vamos
debater no nosso espetáculo. A condição atual do negro no Brasil. Tema amplo,
que nos defronta, expõe feridas, chicotadas e algemas.
No mês de abril além
do trabalho sensível a respeito da negritude e periferia que foi feito na sede
do grupo, através de exercícios e jogos, com a finalidade de nos abrirmos
intuitivamente e racionalmente para o tema, tivemos o prazer de rever e
conhecer outros parceiros. Fomos a Codó (MA), conhecer a ancestralidade da
comunidade quilombola Santo Antonio dos Pretos, afim de trocar experiências e conhecer
mais a sua história de luta, esse quilombo é conhecido pela forte religiosidade
através do Terecô, culto aos encantados, e sua relação direta com o
comportamento , os hábitos e o modo de viver local. É uma comunidade onde as
lideranças são os mais velhos, os “anciões” que guarda e vigia a tradição que
seus antepassados repassaram e que, através da oralidade, ela vai sendo
mantida. Caminhar pela piçarra molhada (pois chovia) de Santo Antonio dos
Pretos nos faz seguir os passos largos dos escravos fugindo dos açoites, da
senzala. Fica em mim o passo lento e firma da Dona Conceição, uma das mais
velhas do quilombo, que sabe com lucidez o nome de todos os netos e bisnetos e
se orgulha de sua história, se reconhece como negra e ainda tem medo que a escravidão,
por algum motivo, volte. Marca também a liderança na comunidade o Senhor
Ubirajara, que é líder comunitário, descrevendo o quanto é danoso o atual
sistema de cotas, “ele vai contra a capacidade dos negros”, fala firme o senhor
Ubirajara, em uma conversa debaixo de um alpendre, olhando as crianças
brincarem na chuva. Trago também a imagem de uma senhora, não lembrarei seu
nome, trazendo um grande ramo de manjericão para fazer um banho de limpeza,
“fé”, responde ela às minhas indagações sobre o Terecô, “ é preciso ter fé”.
É com essa fé que
seguimos viagem para rever nossos parceiros amigos da comunidade de Felipa, já
havíamos nos apresentado na comunidade com o espetáculo Sertão.doc, lá a
tradição do Tambor de Crioula se mantém
viva, e a oralidade e simpatia é traço marcante da comunidade. A surpresa veio,
para nós, a noite, quando uma grande caixa de som tocava em um volume muito
alto um Reggae, nos aproximamos devagar e ouvimos logo as boas vindas de uam
família que ria e dançava, se divertia ao som cadenciado de Reggae jamaicano, “
isso aqui também é de negro”, um deles dizia, reafirmando a sua cultura, nos
mostrando outras diásporas , nos levando para a consciência de que trata-se de um povo múltiplo, o ser humano
é múltiplo e múltipla é a sua cor,seus cabelos e sua religiosidade, então o que
aconteceu no caminhar dos séculos? O que justifica tudo que aconteceu e ainda
hoje acontece com o negro e todas as suas culturas?
Seguimos viagem até
São Luis, ansiosos para conhecer um movimento auto intitulado “Quilombo
urbano”, movimento que através da cultura do Hip-Hop luta contra a
criminalização e extermínio da juventude nas periferias, juventude negra em sua
maioria , rechaçada de direitos, que tem que lutar diariamente contra a
truculência da polícia e os outros braços do poder. O bate-papo foi amplo:
violência, governo, drogas, o estado, as manifestações de junho, passando pelo
preconceito contra a mulher negra, abuso de poder, rede globo, os falsos
movimentos sociais ... camburão.
Voltamos para casa
com a mala cheia de afetos, revoltas e muitas ideias que foram discutidas e
rediscutidas com nossos encontros, nossa mala de viagem está repleta de um
material que deve e vai ser analisado co
um cuidado de um filho que está sendo desenvolvido, ainda está nas nossas
barrigas, umas história que começa há mais de quinhentos anos. Agora precisamos
encalhar nosso navio em outro porto. Um porto mais próximo de casa. Nosso porto
particular. Axé!!
"O projeto Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro é vencedor do Prêmio
Funarte de Arte Negra"
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