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SAIR DO LUGAR COMUM, FLANAR EM TERRA ALHEIA

Posted by Nóis de Teatro On 20:27 No comments



Por Altemar Di Monteiro


Sempre que conversámos, ao longo do processo de montagem de O Jardim das Flores de Plástico, sobre o que significa “flanar”, optei para que os atores deixassem-se levar pelas suas compreensões sensíveis, num conceito que pode se formar num processo mesmo de produção de subjetividade, e não por uma máxima estabelecida para tal, apto a ser seguido. Nesse caminhar, onde a pesquisa também se configura como uma “flanerie” sobre as experiências e construção de conhecimento, percebo que hoje essa ideia e o que ela interfere na nossa prática já se aproxima de uma compreensão comum, coletiva, mas com singularidades da experiência de cada artista com suas periferias e com a própria rua.

De um certo modo, flanar significa trazer um olhar de estranhamento para o lugar por onde passamos, mas significa também ser atravessado por ele e atravessá-lo (fisicamente, num percurso de deslocamento, e metafisicamente, num cruzamento sensível, deslocando também nossos paradigmas) poeticamente. Se nas ruas da periferia de Fortaleza, lugares pelos quais temos o hábito de transitar em nossas ações estéticas e produtivas é possível chegar à noção de flanerie, sair do território comum significa, mais ainda, chegar à ideia de flanar. Perder-se. Colocar-se à deriva. Chegar em lugares que só o acaso pode proporcionar. E a rua é disso. O acaso está na sua multidão, na sua população habitando possibilidades múltiplas de acontecimentos, e não somente o que está pragmatizado pela “mídia do meio dia”, dominada pela “bancada da bala”. Para chegar a essa ideia de caos, de múltiplas possibilidades, faltava-nos duas experiências para finalizar essa primeira etapa da pesquisa e abrir outras questões:

a) estar em um lugar onde os atores nunca estiveram antes;
b) entregar-se ao caos de um ambiente urbano central.

Dai que as apresentações em São Luis enchem-se de importância para a finalização desse processo. Foi no centro da cidade, no dia 29 de maio, onde pudemos nos entregar ao caos da intervenção urbana “O Jardim das Flores de Plástico”, deixando-nos levar pelo transito da caótica Rua Grande, em meio a caixas de som anunciando produtos tecnológicos, pessoas correndo em busca de suas compras, sujeitos de vários territórios da cidade, mas pulsantes enquanto periferia-centro, tendo em vista que é lá onde a população periférica trabalha, nas lojas e outros serviços que se concentram no centro comercial de uma cidade. É aqui que o caos se instala de forma mais precisa. É onde mesmo os conceitos mais ralos de centro e periferia se misturam, e os atores se veem no meio de uma tormenta implosiva do seu teatro, saindo dos lugares comuns, agindo enquanto artistas-bomba, prestes a explodir junto, cedendo e intervindo nos fluxos, apaziguando e aterrorizando os lugares.

Esse olhar totalmente deslocado foi fundamental para a compreensão dessa ação estética. E como foi potente. Uma das experiências mais marcantes ao longo de todo o processo. Antes de irmos para a “guerra”, tivemos momentos de concentração da equipe, reconhecimento do território e demarcação de algumas compreensões. A primeira dela era a da postura de um turista-crítico, onde era necessário sairmos do olhar midiático sobre a cidade-marketing que estávamos entrando e lançar sobre aquelas ruas um olhar que leva em consideração, inclusive, os procedimentos de mercado que nelas operam. Não podíamos ver o azulejo maranhense como apenas objeto de fetiche de um capital mercadológico, mas como dispositivo para a própria reflexão sobre a cidade, sobre o que suas arquiteturas significam e como elas nos atravessam.

E assim a coisa aconteceu. Um verdadeiro acontecimento que, por instantes e flashs rápidos, parava o fluxo do centro para fechar uma roda e em outros de dissipava no meio da multidão para a criação ritualística de outro ato. Trabalhadores que de dentro de suas vitrines e lojas saiam curiosos para a rua, e num instante de curiosidade já filmavam as ações perguntando, inquietos, o que estava acontecendo. O programa/folder era entregue de forma rápida pela equipe de apoio do trabalho mas, sem tempo para maiores explicações, a cena já se escorria, deslocando-se e já estava em outra esquina, na frente de um banco poderoso ou de uma loja de grandes marcas. Experiências que deslocavam o olhar das pessoas naquelas ruas. Experiências que por um minuto ou dois traziam para os espectadores um deslocamento do que acontece habitualmente naquelas calçadas. Minutos muito significativos tendo em vista o tempo acelerado em que vivemos e a dificuldade de garantir a atenção de uma pessoa por muito tempo, principalmente no corre-corre de um centro comercial.

O caos se instaurou: em nós principalmente. Talvez por ser a penúltima apresentação os atores estavam mais livres, mais dispostos ao exercício sempre instigado de ceder e intervir, de se tranquilizar e sair dos ditames conceituais do que é teatro de rua, do que é performance, e do que é intervenção urbana. Criamos uma poética nossa, incapaz de ser reproduzida em outro lugar, incapaz de ser a mesma na apresentação seguinte. No sábado encerramos as atividades pelas ruas do Viva Fé em Deus, em São Luis, outra periferia, outro lugar poético, cativador de uma singularidade tremenda, capaz de intervir sobre a nossa obra e, num diálogo constante, produzir um novo acontecimento em cada momento que os atores saíram pelas ruas com suas pernas de pau entoando seu cântico de liberdade. Cada apresentação fez isso em nós: provocou-nos a liberdade, em atos únicos de singularidade, suspiros de prazer, vivências que muito difícil podem ser repetidas, dada a multiplicidade das experiências que são possíveis de ser vividas nas nossas periferias. Queremos todas: as mais belas. As histórias podem ser outras. Cada ato nosso será outro. E será. A rua, em especial as periferias por onde passamos, nos provou que outros discursos podem ser escritos, outros trajetos podem ser feitos, outras conexões prováveis podem ser delineadas. E estamos aqui pra isso: artistas periféricos, negros, suburbanos, subdesenvolvidos, loucos pra gritar o quanto esse discurso segregador e violento sobre as periferias pode ser invertido.

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