Por Kelly
Enne Saldanha
"Eu escrevi um poema para uma mulher que
sobe em um ônibus em Nova York. Ela é empregada doméstica. Carrega dois sacos
de compras. Se o ônibus para de repente, ela ri. Se o ônibus para lentamente,
ela ri. Eu pensei...Se você não conhece os traços negros pode achar que ela
está rindo. Mas ela não estava rindo. Ela estava simplesmente esticando os
lábios e fazendo um som hahahaha...Eu entendi. É um truque de sobrevivência.
Agora deixe-me escrever sobre isso para homenagear esta mulher que nos ajuda a
sobreviver.
'Setenta anos neste mundo
E a criança para quem trabalho me chama de
menina.
Eu digo: Sim, senhora,(hahaha)... por causa do
trabalho.
Sou orgulhosa demais para ceder,
E pobre demais para resistir.
Então dou risada
Até a barriga doer
Quando penso em mim mesma.
Meu povo me faz rolar de tanto rir.
Ri tanto que quase morri.
As histórias que contam parecem mentiras.
Eles cultivam as frutas,
Mas comem as cascas.
Eu rio... Até começar a chorar,
Quando penso em mim mesma.'"
Maya Angelou
Este
primeiro mês das "Despejadas" junto ao Porto Iracema das Artes foi cheio
de grandes descobertas, encontros, achados, reflexões e investigações. Começar
este relato trazendo as palavras de Maya Angelou traz bem um resumo daquilo que
tivemos de experiências em nossos encontros.
O que há
por trás de um sorriso? As pessoas dizem aquilo que querem dizer? Elas dizem
aquilo que sentem? Como dizemos nosso "socorro"? Quem quer nos ouvir?
O quarto
de despejo, livro de Carolina Maria de Jesus que nos serve de base para criação
desse processo traz reflexões do dentro e do fora. Ao mesmo tempo que fala da
particularidade de dentro do lar, fala também do meio social, externo e
público. Nos vemos mais uma vez, Nóis de Teatro, tratando sobre o público e o
privado, o dentro e o fora, o pessoal e o coletivo.
Em se
tratando de mulher, o que é seu público? O que é seu privado? O que acontece no
quarto de despejo de cada uma de nós? O que não falamos? O que queremos dizer?
Onde escondemos nosso pedido de socorro? Alguém quer nos ouvir?
Quando
Maya Angelou declama seu poema falando de sorriso, ela cai em choro. Lágrimas
cortantes, dilacerantes. Lágrimas cheias de dor. Lágrimas cheias de sorriso.
Quantas vezes nos calamos? Quantas vezes não fomos caladas? Dentro e fora de
casa. Dentro e fora. Privado e público. O que nos cala? O que deixamos de dizer?
Imbuídas
por esse silêncio, por aquilo que não é dito, aquilo que não podemos dizer, uma
cena foi construída. Na verdade inúmeras cenas já foram experimentadas, mas
essa em especial talvez relate e resuma melhor nossas andanças nesse primeiro
mês de projeto no Porto Iracema.
Nos fundos
da nossa sede, local dos nossos encontros, temos nosso escritório que é
separado da cozinha por uma porta e uma janela de madeiras. Parece a entrada de
uma casinha comum. Uma das cenas apresentadas foi nesse espaço. Descrição da
cena: Porta e janela fechada. Silêncio. A janela se abre e dentro está uma
mulher, parada olhando para o público fora da sala. Pela janela o público vê
toda a cena. A mulher que está lá dentro está em silêncio, tentando esboçar um
sorriso. Além da tentativa de sorriso, há um texto retirado do livro da
Carolina: "Eu sou muito alegre. Todas manhãs eu canto. Sou como as aves
que cantam ao amanhecer. De manhã eu estou sempre alegre. A primeira coisa que
faço é abrir a janela e contemplar o espaço." Este texto é dito de forma
sisuda, de olhos lacrimejantes. Da boca saem essas palavras mas os olhos pedem
socorro. Ao terminar o texto, por trás da janela aparece uma pessoa que a faz
calar. Esta pessoa olha para a plateia, olha para o público e fecha bruscamente
a janela. Depois de alguns segundo, a janela volta a ser aberta. Desta vez a
mulher está mais afastada. Porém o olhar é ainda o mesmo. Olhar de apavoro,
medo, engasgo, mas, dessa vez, nenhuma palavra sai de sua boca. O que ela quer
dizer? Depois de algum tempo, a figura reaparece atrás da janela e repete os
mesmos olhares e bruscamente fecha a janela. Depois de mais alguns segundos, a
janela volta a ser aberta. Desta vez não há ninguém. Somente o vazio da sala
cheia de objetos. Depois de mais algum tempo, a figura reaparece. Repete os
mesmos olhares e dessa vez a janela é fechada lentamente.
Toque o
sino se você já presenciou uma situação de violência com alguma mulher. Quantas
vezes esse sino será tocado? Quantas praças públicas têm nome de mulher? Quantas
mulheres dão nomes às ruas? Quantas estão em altos cargos fudendo nossa vida?
Quantas vezes seguramos a mão de um agressor na rua, na família, na vizinhança?
Quantas vezes nos calamos diante das agressões que sofremos? Quantas vezes
dizemos que não adianta se meter na vida do casal? Quantas vezes a
particularidade da vida do casal foi motivo do seu silêncio? Até onde podemos
interferir nessa particularidade? Até onde devemos ir?
O silêncio
de consentimento. O silêncio de socorro. O silêncio da falta de esperança. O
silêncio. Como ele dói. Quantas dores silenciadas. Quantas mulheres caladas.
Quantas dores, nós, mulheres da periferia deixamos escondidas. Não podemos
parar. Não podemos falhar. Porque além de sermos marginalizadas, somos
faveladas.
Para que
não precisemos mais sorrir quando na verdade queremos gritar. Para que não
precisemos mais aturar, fingir, engolir e sorrir.
1 comentários:
Olá, encontrei essa pagina, pois estava procurando esse poema de Maya Angelou e procuro a referência do ano de lançamento desse poema. Vocês podem me ajudar?
Grata e atenciosamente.
Carmen
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